Em praticamente todas as épocas da humanidade, a maioria dos religiosos sempre
apresentou atitudes polêmicas e por vezes contraditórias a respeito do uso adequado dos
recursos materiais em uma vida guiada por ideais espirituais.
Discussões infindáveis sobre o significado espiritual da riqueza material levaram
muitos doutrinadores e líderes religiosos a amaldiçoarem, em nome de Deus, o recurso
amoedado. No Ocidente, historicamente, essa foi a atitude mais comum, sobretudo dentro
do catolicismo. Posteriormente, com o advento do protestantismo, várias vertentes
rejeitaram esse paradigma comportamental, elegendo o dinheiro como algo perfeitamente
enquadrado em uma vivência ética da criatura humana. De fato, diversos historiadores
consideram essa diferença de perspectiva um dos fatores determinantes para o maior
desenvolvimento político-econômico da chamada América anglo-saxônica, de cultura
predominantemente protestante, quando comparada à América Latina, de tradições
majoritariamente católicas.
Importante registrar que, mais recentemente, a visão “positiva” do bem material por
parte dos movimentos protestantes ganhou uma ênfase exagerada, sendo o dinheiro
considerado como indicação categórica de vitória espiritual e bênção divina, especialmente
por facções do chamado “Neo-pentecostalismo”.
Entretanto, o bom senso aliado a uma leitura criteriosa do Evangelho de Jesus não
permite nenhuma dúvida sobre o comportamento verdadeiramente evangélico do cristão
perante os recursos materiais. Realmente, analisados em conjunto, os ensinamentos de
Jesus sobre os bens materiais e seu emprego em nossa vida não dão margem a nenhum
equívoco.
Primeiramente, Jesus jamais disse ou deu a entender que o dinheiro, em si mesmo,
seria sinal de bênção, privilégio, milagre ou condição espiritual de destaque. Ele mesmo
asseverou “O Filho do Homem não tem uma pedra para encostar a cabeça”. E, deixando
evidente que o dinheiro não significava vantagem do ponto de vista espiritual, foi
contundente ao afirmar “É mais fácil um camelo passar pelo vão de uma agulha do que um
rico entrar no Reino dos Céus”. Para não deixar margem a qualquer dúvida, enunciou as
imortais “Bem-aventuranças”, enfatizando que as vantagens materiais não são credenciais
de evolução espiritual. Ademais, com raras e especiais exceções, seus discípulos e
apóstolos, assim como Ele próprio, eram pessoas das camadas sociais mais humildes e de
maneira nenhuma nós podemos admitir que os apóstolos fossem preguiçosos,
amaldiçoados ou criaturas afastadas da chamada “Palavra de Deus”. Vale lembrar que os
apóstolos, apesar de profundamente identificados com o trabalho apostólico de divulgação
evangélica, sofreram muito durante a vida física e, à exceção de João Evangelista,
morreram invariavelmente de forma violenta, em condições de penúria material, mas de
exuberante vitória espiritual.
Por outro lado, Jesus igualmente não amaldiçoa o dinheiro e muito menos os ricos.
Adverte quanto ao perigo da prova da riqueza, mas não torna a pobreza passaporte para a
virtude, como muitos até hoje apregoam. José de Arimatéia, Nicodemos e o famoso
“Centurião Romano”, cuja fé foi exaltada pelo Mestre, são exemplos de criaturas de destaque socioeconômico que receberam atenção e profunda consideração por parte do
Mestre. Além deles, a passagem inesquecível de Zaqueu merece análise. Quando esse
homem, ao hospedar Jesus e os Apóstolos, decide doar metade de seus bens aos pobres e
restituir quatro vezes mais aqueles a quem tivesse lesado, Jesus disse que “a salvação
tinha entrado naquele lar”. Ora, Zaqueu era um homem relativamente rico, o que implica
que doar cinquenta por cento de seus bens não significaria necessariamente um
empobrecimento propriamente dito. E Jesus não requisitou mais.
Além disso, o grupo apostólico apresentava elementos de elevada condição social,
como é o caso de Mateus. Vale acrescentar que Saulo de Tarso, além de perseguidor do
Cristianismo, era um homem de elevada condição social e foi “resgatado” pelo próprio
Cristo, em Espírito, às portas de Damasco, o que é confirmado pela aparição do Mestre a
Ananias. Obviamente, seria desnecessário comentar sobre a relevância paulina no trabalho
apostólico, já que, depois do próprio Jesus, o apóstolo de Tarso foi indiscutivelmente o
maior propagador do Cristianismo nascente.
Aprofundando a questão, é interessante adir que Jesus, em momento algum, instituiu
a necessidade de donativos fixos por semana, mês ou ano a quem quer que seja, muito
menos a instituições religiosas formais, que, aliás, Ele não cansava de criticar no que se
refere ao seu luxo e hipocrisia no trato com as questões espirituais e no contato com os
irmãos. Este posicionamento fica evidente, por exemplo, quando o Mestre se refere
criticamente às “longas túnicas” usadas pelos religiosos ou quando afirma que, “a pretexto
de longas preces, devoram as casas das viúvas”. Obviamente, a idéia de dízimo mensal
não tem nenhum respaldo no Evangelho de Jesus e, para ser defendida pelos religiosos,
supostamente cristãos, necessita de subsídios do respeitável, porém limitado, Velho
Testamento, sobretudo de Malaquias, texto claramente em oposição aos ensinos de Jesus.
Afinal, o Mestre várias vezes afirmou: “Tendes ouvido o que vos foi dito, eu porém vos
digo....”. Resta saber se nós, como cristãos, confiamos mais em Jesus ou no Velho
Testamento!
Como se não fosse suficiente, Jesus nos deixa as passagens do “Óbolo da Viúva” e
da “Parábola do Bom Samaritano”, que são insofismáveis em relação à necessidade de
espontaneidade no gesto do bem. Lembremos da Codificação Espírita que nos ensina que
Deus não avalia tão-somente a ação propriamente dita, mas igualmente a intenção por
detrás da ação. Realmente, imaginar Jesus pedindo donativos mensais seria algo
desrespeitoso e trágico, para não dizer ridículo, em se tratando do Espírito mais evoluído
que nasceu no Planeta Terra.
A discussão acima não se trata de interpretação forçada, uma vez que o próprio Jesus
repreendeu um dos apóstolos quando eles estavam hospedados em Betânia, na casa de
Lázaro, e Maria ungiu os pés de Jesus com um perfume muito caro (Evangelho de João,
Capítulo 12, a partir do primeiro versículo). Realmente, um dos apóstolos achou um
“desperdício” gastar tanto dinheiro (“trezentos denários”) com perfume, ao invés de ajudar
aos pobres. Jesus esclareceu: “Deixai-a; ela guardou este perfume para o dia da minha
sepultura. Pois sempre tereis convosco os pobres, mas a mim nem sempre me tereis”
(João, 12:7-8), denotando que há muitas formas de se fazer o bem e que doar um
“presentinho” a quem amamos não é nenhum crime e, dependendo da intenção de quem
age fraternalmente, pode ter um significado muito maior do que qualquer “obrigação da Lei”,
pois, afinal, a “Lei e os profetas” foram resumidos pelo Homem de Nazaré no Amor, e o
Verdadeiro Amor requer espontaneidade em suas ações.
Logicamente, é perfeitamente lícito e meritório alguém se responsabilizar por um
donativo regular a uma instituição de caridade, seja ela vinculada a núcleos religiosos ou
não. O problema está em se restringir essa ação somente à igreja a que se está vinculado e
tornar esse tipo de caridade um pré-requisito único e imprescindível para a “Entrada no
Reino dos Céus”. Vale questionar: Se o cristão dá o seu dinheiro diretamente aos
necessitados, sem uso de “atravessadores” (lê-se: instituições religiosas), essa ação valeu
menos do que o donativo feito à igreja?! Neste caso, resta saber onde está a igreja na
“Parábola do Bom Samaritano”...
Neste contexto, naturalmente lembramo-nos de Francisco de Assis, que representa
uma das mais belas vidas cristãs da História, em função do seu desapego aos bens
materiais. No entanto, é fácil notar uma deturpação no entendimento dos exemplos
franciscanos, assim como ocorre com o próprio Cristo. Realmente, tornar Francisco de Assis
infalível seria considerá-lo igual ou maior do que Jesus, o que é inadmissível. Por outro
lado, um entendimento mais profundo da vida cristã de Francisco de Assis passa
necessariamente pela compreensão do contexto histórico extremamente conturbado em
que ele vivia, sobretudo no que se refere aos hábitos nada cristãos dos religiosos da época.
A atitude franciscana, até certo ponto drástica, de rejeição aos bens materiais e de uma vida
pobre, foi importantíssima para evolução espiritual do Planeta Terra, uma vez que os
religiosos daquele tempo estavam completamente esquecidos do verdadeiro significado do
Evangelho. Aliás, muitos historiadores admitem que Francisco de Assis teve papel de
destaque na mudança das instituições sociais europeias, pois, ao propor uma atitude
religiosa alternativa ao “status quo”, ajudou a sociedade a questionar os valores religiosos
da Idade Média, contribuindo para o fim do Feudalismo e o advento da Renascença e até
mesmo da Reforma Protestante, que foram alguns dos marcos da transição entre as Idades
Média e Moderna.
Logo, apesar da indiscutível relevância na missão franciscana, considerar a rejeição
aos bens materiais e a vida exclusivamente pobre um referencial único de atitude cristã
seria um erro lamentável com base nos vários ensinos e exemplos de Jesus. De fato, “A
liberdade é total para o amor”, denotando que o bem tem vários caminhos e mecanismos de
atuar. Nem a mendicância e nem a riqueza fazem o Espírito melhor ou pior, pois “o que é da
carne é carne e o que é do espírito é espírito”. Qualquer situação material é meramente
uma oportunidade evolutiva de características específicas para o Espírito necessitado de
experiência. Desta forma, a afirmação paulina (Efésios, 4:28): “Trabalhe, fazendo com as
mãos o que é bom, para que tenha o que repartir com o que tiver necessidade” é a
orientação mais segura e condizente com as palavras do próprio Jesus. Realmente, essa
proposta pode ser considerada correta, à luz das Leis Divinas do Amor, independentemente
dos vários contextos da vida física e, por conseguinte, pode ser generalizada como
referencial de comportamento cristão. Compreendendo, em concordância com “O Livro dos
Espíritos”, que “trabalho é toda ocupação útil”, o leque de opções dentro da esfera do Amor
realmente se torna incalculável, desde que tenhamos boa vontade para começar. Assim
sendo, trabalhemos no bem, hoje, amanhã e sempre, das mais variadas formas possíveis,
de forma que, quando este trabalho repercuta em qualquer ganho de cunho material,
educacional ou espiritual, saibamos que o Pai Maior, que abençoa a caridade espiritual,
também abençoa o pão material fornecido com carinho e enternecimento ao nosso irmão,
pois ambas as atitudes são, no fundo, o mesmo exercício de Fraternidade e de Amor, que
resume todo o Evangelho de Jesus.
Leonardo Marmo Moreira – Dinheiro e Espiritualidade
- O Consolador – Nº 63 – 06/07/2008